Em plena crise hídrica, água sai de rios para encher piscinas de ricos, enquanto os produtores rurais sofrem com a seca

Por volta das 10h da manhã, 16 caminhões-pipa formam fila às margens do Ribeirão Riacho Fundo, na Vila Telebrasília. Mesmo em meio ao racionamento, cada veículo sai dali com pelo menos 10 mil litros de água e muitos acabam voltando outras duas vezes ao dia. Uma placa no local anuncia que a captação é autorizada pela Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal (Adasa) para caminhões-pipa devidamente outorgados. Em média, por dia, 480 mil litros de água são captados apenas naquele ponto — número suficiente para abastecer 1,2 mil casas com quatro pessoas, por exemplo. O fato abre discussão entre especialistas sobre a cobrança e a utilização dos recursos em tempos de crise hídrica.

As resoluções da Adasa não limitam o volume para captação. Devido à crise hídrica, apenas o horário foi reduzido – das 6h às 14h. No Distrito Federal, 13 pontos são liberados para captação de água bruta por caminhão-pipa. O recurso, no entanto, só pode ser utilizado para atividades de irrigação, terraplanagem e construção civil. O Correio acompanhou a fiscalização da Polícia Militar Ambiental no local, na última terça-feira. Todos os 16 veículos apresentaram o documento de outorga em dia. O registro tem validade de cinco anos. Segundo a Adasa, não é cobrada a emissão do documento, nem a captação da água dos pontos. Hoje, 554 veículos estão outorgados no DF e possuem licença para fazer retiradas em córregos, nascentes ou riachos licenciados.

Um motorista, que pediu para não ser identificado, contou que a água captada no local é utilizada para regar jardins de clientes que compram o serviço. “Entendemos a crise hídrica, mas esse é o nosso ganha-pão. Coloco comida na minha casa com esse dinheiro. Pego água pelo menos três vezes ao dia. Daqui, vamos regar jardins, principalmente no Lago Sul. Utilizamos os 10 mil litros que o veículo comporta em cada viagem”, contou. “Prefiro fazer a captação aqui, onde a água é mais limpa. Vendo a água para encher piscinas, então isso impacta muito”, informou outro motorista.

Segundo o coordenador de fiscalização da Adasa, Hudson Rocha de Oliveira, a água bruta retirada pelos caminhões-pipa não serve para consumo humano. “A água bruta retirada dos córregos não é potável. Caso haja alguma irregularidade, o dono do caminhão é notificado e nós abrimos processo de fiscalização. A pessoa fica sujeita a uma multa que varia de R$ 400 a R$ 10 mil, dependendo da gravidade da ação e do impacto, até a cassação da outorga”, esclareceu.

Apesar das denúncias, Hudson destacou que a equipe nunca multou ou apreendeu nenhum veículo por distribuição de água indevida. As penalidades já aconteceram em razão de o caminhão estar sem outorga ou ter a licença fora do prazo de validade. “Mesmo assim, quando fazemos a fiscalização é difícil flagrarmos quem não é outorgado. Recebemos denúncias às vezes, mas como um veículo desse porte enche em menos de 30 minutos, quando a equipe chega, já não encontra mais o caminhão”, esclareceu.

Ele explicou que quem atua de forma indevida são motoristas de veículos de outros estados, como de Goiás, que estão executando um serviço no Distrito Federal, ou pessoas que não trabalham com a atividade de forma rotineira, mas estão, temporariamente, com uma obra em andamento.

Debate
Na atual situação do DF, as grandes retiradas de água bruta são apontadas como “absurdas” pela promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente Marta Eliana de Oliveira. “Em debates sobre como economizar, sempre apertam para o lado do produtor rural, que já está falindo com a crise hídrica. Enquanto isso, tem gente cuidando de jardim e enchendo piscina. Isso é um erro. Paisagismo no cerrado deveria ser de cerrado. Sem usar quantias absurdas de água para irrigação”, declara. Segundo a promotora, é necessário que a Adasa mude a legislação sobre a utilização da água bruta. “Atualmente, produtores rurais e motoristas de caminhões-pipa não pagam pelo uso. Diante da atual situação, talvez seja a hora de abrir debate sobre isso”, argumenta.

Professora do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB), Marília Luiza Peluso reforçou que a água retirada de córregos, riachos e mananciais para irrigação é desproporcional. Segundo ela, há pesquisas que reforçam um consumo de água maior nessas atividades do que o volume usado na agricultura e na indústria, por exemplo. “Isso é totalmente inadequado. A irrigação tem que ser repensada com técnicas de cotejamento. Além disso, há espécies de plantas mais resistentes à falta de água e é importante a conscientização. As pessoas não estão se dando conta do desastre que vem por aí”, alertou.

Ela destacou que a água usada na construção civil e em terraplanagem é necessária, mas precisa ser utilizada com parcimônia. “Se não fizermos o uso desse recurso com responsabilidade, poderemos ter um agravamento da nossa situação. Os projetos de terraplanagem e construção civil, por exemplo, são necessários para a oferta de infraestrutura e para a geração de emprego e renda. Mas a água precisa ser usada de maneira adequada”, alertou.

A Adasa detalhou que, quando começou a regularização da captação de água, em 2009, ao todo eram aproximadamente 50 pontos utilizados pelos usuários. O órgão defendeu que reduziu esse número para 13 e organizou o serviço. “Os pontos foram estrategicamente escolhidos para que não comprometam os mananciais. A Adasa realiza o monitoramento e, quando identifica anomalias, o ponto é suspenso e, muitas vezes, revogado”, informou. A agência esclareceu, ainda, que, em parceria com a Terracap e a Novacap, “está elaborando projeto para revitalizar os pontos de caminhão-pipa, oferecer aos usuários locais mais seguros e preservar os leitos dos rios e córregos do DF.”


Devido à crise hídrica, ficaram suspensas, entre novembro e agosto de 2017, as concessões de novas outorgas para a captação de água subterrânea e por caminhões-pipa. Além disso, ficou permitido que apenas um caminhão retire água por vez no local. Na visita ao Ribeirão Riacho Fundo, a reportagem flagrou a captação sendo feita por dois caminhões ao mesmo tempo. O Correio tentou entrar em contato com a Associação dos Caminhões-Pipa do Distrito Federal, mas não conseguiu retorno.


Saúde
O gerente de apoio à fiscalização da Vigilância Sanitária, Leonardo dos Reis Correa, explicou que a Secretaria de Saúde criou uma instrução normativa com critérios para distribuição de água potável por caminhões-pipas. O texto prevê documentações que são necessárias para o transporte de água. Entre as regras está a necessidade de o veículo retirar o recurso de quem tenha autorização para fornecer água tratada, como a Caesb. No entanto, em razão da crise hídrica, o órgão não está mais fornecendo essa opção.

Segundo Leonardo, alguns caminhões têm recorrido a municípios do Entorno. Ele explicou que a atitude não é ilegal, desde que o dono do caminhão apresente o laudo da água que confirme as especificidades para consumo humano. “Caso contrário, a pessoa recebe um auto de infração e uma multa que varia de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão”, explicou.

Leonardo explicou que a água captada de córregos, riachos e nascentes não serve para consumo humano. Caso algum estabelecimento esteja recebendo o recurso de forma ilegal, o proprietário terá o local autuado.

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